quarta-feira, 20 de junho de 2007

Torresmo à milanesa


(Adoniran Barbosa e Carlinhos Vergueiro)

O enxadão da obra
Bateu onze horas
Vamo se embora, João
Vamo se embora, João
Que é que você troxe

Na marmita, Dito?

Truxe ovo frito
Truxe ovo frito
E você, Beleza,
o que é que você troxe?
Arroz com feijão
E um torresmo à milanesa
Da minha Tereza
Vamos almoçá
Sentados na calçada
Conversarmos sobre isso e aquilo
Coisas que nóis não entende nada

Depois, puxa uma palha
Andar um pouco
Pra fazê o quilo
É dureza, João...
É dureza, João...
O mestre falô
Que hoje não tem vale, não
Ele se esqueceu
Que lá em casa num só eu...


Sete da madruga e os caras já estão na labuta pesada, muitos tomando a primeira cachaça para afastar a fome e espantar os fantasmas da dura realidade. Às onze, a batida do enxadão anuncia a hora de conferir a marmita preparada na noite anterior pela mulher, que terá sua memória celebrada no sabor e na cor do feijão. Claro, se houver mulher, se houver feijão.
Em Torresmo à Milanesa, entretidos com suas marmitas, os peões conversam acaloradamente sobre coisas que não entendem nada. O torresmo colocado na marmita de Dito, provável Benedito, evidencia mais um traço da cultura nordestina que ajuda a construir São Paulo. O colega Beleza, por sua vez, deve ter recebido a alcunha em virtude de seus atributos físicos, ou à falta de virtude destes.
Além de cantar São Paulo, assim como na maioria de suas composições, Adoniran traz, em Torresmo à Milanesa, uma das características mais marcantes de sua obra: rir da própria desgraça, aproveitar a miséria para fazer humor.
Em 1980, Adoniran incluiria a canção em seu último disco, “Adoniran Barbosa e Convidados”. A capa, a cargo de Elifas Andreato, traria, inicialmente, o desenho de um palhaço triste. O pessoal da gravadora não gostou e convenceu Elifas a refazê-la, sob o argumento de que talvez “Adoniran não entenderia esse negócio de palhaço”. O disco foi lançado com um belo retrato do compositor. O desenho do palhaço foi parar nas mãos de Fernando Faro, amigo de Adoniran e produtor do LP. Ao se deparar com sua própria figura transformada num palhaço chorando, nas mãos do amigo, Adoniran telefonou para Elifas: “Sou esse palhaço triste aqui, não esse alemão que você colocou no disco!”.
Torresmo à Milanesa foi feito pelo palhaço triste e não por qualquer outro Adoniran que vagasse pelas ruas de São Paulo. Este samba foi composto com Carlinhos Vergueiro, em meia hora, de pé, sem instrumentos, no balcão do antigo bar "Mutamba", na R. Major Quedinho, lugar muito frequentado por artistas, jornalistas e boêmios, pois ficava ao lado da Rádio e do estúdio Eldorado.
Chegando em casa, precavido, Carlinhos Vergueiro registrou o samba numa fita e, algum tempo depois, levou-a à casa do novo parceiro para os ajustes finais. O principal ajuste foi na marmita do Beleza. Perguntado por Dito sobre o conteúdo de sua bóia, este responderia: “Arroz com feijão e um bife à milanesa”.
Nesse momento, Adoniran pediu ao parceiro:
- Carlinhos, desculpe, vamo voltá a fitinha, canta torresmo à milanesa....
- Mas por que Adoniran?
- Porque não existe.
Este é o palhaço, que prefere o imaginário ao real. E assim, o verso ficaria “arroz com feijão e torresmo à milanesa”.
Carlinhos retomou o violão, voltou a fita e tornou a cantar o samba, para conferir se a nova letra funcionava.
Mas parece que Adoniran queria que Beleza sentisse fome. Ao chegar naquele pedaço, ele interrompeu novamente o parceiro:
- Desculpa Carlinhos, vamo voltá mais uma vez, canta só “um torresmo”...
- Mas por que Adoniran?
- Porque é mais triste!...
Por isso, os palhaços choram...

Fontes:
- http://vejasaopaulo.abril.com.br/entrevistas/m0117294.html
- papo de buteco com o amigo Mário Mammana, amigo de Fernando Faro, profundo conhecedor dos sambas e histórias de Adoniran, amante de cerveja e comedor torresmo, entre outras coisas.

4 comentários:

Professor Moisés Basílio disse...

Numa dessas minhas viagens pelos interiores do Brasil, cheguei até a Ilha de Marajó. Fui num barco, no contra-fluxo dos turistas, domingo à noite. Quando cheguei não tinha condução até o hotel e acabei conseguindo pousada no barco com a tripulação. Antes de dormir, apareceu um violão e ficamos bebendo cerveja e cantando. Quando chegou minha vez de puxar uma música, cantei o samba "Trem das Onze". De imediato me identificaram como paulista. É isso aí, Adoniran é cara paulistana, é a nossa melhor tradução. Axé! Moisés Basílio

Fred Maciel disse...

Parabéns pelo Blog, e gostei da inclusão das fontes, mesmo que seja o bom e famoso papo de boteco..

Anônimo disse...

João Rubinato, de Valinhos, SP, grande fotógrafo do cotidiano.

Unknown disse...

Obrigada pela historia. Espero q tenha mais...